SEUL, Coreia do Sul – Mais de um mês depois de o presidente da Coreia do Sul, agora acusado de impeachment, Yoon Suk Yeol, ter declarado a lei marcial, o país continua profundamente mergulhado em uma crise política.
A marca de um mês desde o decreto da lei marcial de 3 de dezembro ocorreu pouco antes do quarto aniversário, na segunda-feira, do ataque ao Capitólio dos EUA por partidários do então presidente Donald Trump em 6 de janeiro de 2021. Os analistas estão examinando ambos os casos – por mais diferentes que sejam. — como exemplos de feridas autoinfligidas à democracia e explorando-as em busca de lições sobre como evitar que se repitam.
Desafios à democracia na Coreia do Sul e nos EUA
Os exemplos da Coreia do Sul e dos EUA têm diferenças claras. O ataque ao Capitólio dos EUA há quatro anos foi uma tentativa de anular os resultados eleitorais. O decreto da lei marcial de Yoon visava quebrar a resistência de um parlamento controlado pela oposição.
Mas “a característica essencial da ação é semelhante”, argumenta Aurel Croissant, cientista político da Universidade de Heidelberg, na Alemanha. Ele diz que ambos os momentos foram tentativas – seja de um executivo em exercício ou de seus apoiadores – “para evitar que outro ramo do governo desempenhe seus deveres constitucionais e responsabilize o governo”.
Os cientistas políticos chamam isso de “autogolpe”.
“A declaração sul-coreana da lei marcial é um exemplo clássico de tal auto-golpe”, diz Croissant, e muitos vêem a insurreição de 6 de Janeiro nos Estados Unidos como uma delas também.
Para muitos sul-coreanos, a sua experiência levanta naturalmente comparações com o ataque ao Capitólio dos EUA. Isso inclui o Presidente Yoon, que sofreu impeachment, que argumentou que deveria desfrutar da mesma imunidade absoluta de processo criminal pelos seus actos oficiais que o Supremo Tribunal confirmou para os presidentes dos EUA no ano passado.
A lei sul-coreana concede, de facto, imunidade aos presidentes contra processos judiciais, excepto no caso de acusações de insurreição ou traição. Yoon está sendo acusado de insurreição.
Numa conferência de imprensa em Seul na segunda-feira, o secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, disse: “Tínhamos sérias preocupações sobre algumas das ações que o presidente Yoon tomou e as comunicamos diretamente ao governo”.
Mas, disse ele, “Temos uma enorme confiança na resiliência da democracia da Coreia do Sul”, cujas instituições, argumentaram os EUA, se mantiveram firmes.
Resistência aos autogolpes vs. resiliência
Croissant argumenta que se as instituições da Coreia do Sul tivessem resistido, Yoon não teria sido capaz de declarar a lei marcial, mesmo por algumas horas.
“A democracia sul-coreana é forte na reação às crises”, diz ele, “mas é muito fraca na prevenção de crises”.
Embora a lei sul-coreana exija que o presidente notifique o parlamento sobre uma declaração de lei marcial, e o parlamento possa exigir que o presidente cancele a declaração, o parlamento não tem poder para vetá-la.
Parte do problema reside na forma como o sistema político da Coreia do Sul foi concebido e construído, diz o cientista político da Universidade Nacional de Seul, Kang Won-taek.
“Até agora, o cerne da democratização da Coreia”, explica ele, “tem sido centrado na realização de eleições justas e democráticas para presidente”.
Kang argumenta que o sistema atingiu os seus limites e que alguns dos poderes do presidente precisam agora de ser redistribuídos. Um debate sobre esta questão vem acontecendo há alguns anos.
O “músculo” por trás dos autogolpes
Outra razão pela qual o autogolpe de Yoon falhou é que os militares se recusaram a usar a força para impor a lei marcial.
Um factor que contribuiu para isso, diz Kang, foram os acontecimentos de Maio de 1980, quando a junta militar então governante da Coreia do Sul enviou tropas para reprimir os protestos pró-democracia na cidade de Gwangju, matando cerca de 200 civis. “Os soldados sentiram-se extremamente envergonhados depois de testemunharem o incidente em Gwangju”, diz ele.
O autor sul-coreano Han Kang ganhou o Prêmio Nobel de Literatura no ano passado por livros como Atos Humanosque tratou do trauma de Gwangju.
No parlamento da Coreia do Sul, no mês passado, o líder da oposição, Park Chan-dae, mencionou duas das questões que Han levanta sobre Gwangju: “O passado pode ajudar o presente?” e “Os mortos podem salvar os vivos?”
“Ao vivenciar o conflito civil do decreto da lei marcial de 3 de dezembro”, disse ele, “gostaria de responder ‘sim’ à pergunta: ‘Pode o passado ajudar o presente?’ Porque maio de 1980 salvou dezembro de 2024.”
Croissant, o cientista político na Alemanha, argumenta que, como os líderes que encenam autogolpes muitas vezes exigem o uso ou a ameaça da força para atingir os seus objectivos, os legisladores devem supervisionar rigorosamente os militares e os aparelhos de segurança para garantir que aderem à constituição.
A última linha de defesa
No final das contas, Croissant salienta que a Coreia do Sul e os EUA são democracias representativas, onde as pessoas escolhem representantes para governar em seu nome. Quando os representantes falham, acrescenta, os cidadãos devem mobilizar-se para proteger eles próprios os seus direitos.
“A sociedade civil é a última linha de defesa da democracia”, diz Croissant, citando Daron Acemoglu, vencedor do Prémio Nobel de Economia.
Os sul-coreanos têm-se mobilizado há mais de 100 anos, acrescenta Croissant, aprendendo lições de 35 anos de ocupação colonial japonesa e de mais de 25 anos de ditaduras militares.
Se Eun Gong da Tuugo.pt contribuiu para este relatório em Seul.